Cinema e história por José D'Assunção Barros
- Vitória Santana
- 20 de mai. de 2020
- 21 min de leitura
Cinema e História têm desenvolvido relações bastante íntimas desde que os primeiros filmes começaram a surgir por volta do alvorecer do século XX. De fato, estes dois campos da atividade e da criação humana não cessaram de intensificar progressivamente suas possibilidades de interação à medida que o Cinema foi se firmando como a grande arte da contemporaneidade. Forma de expressão artística para a qual concorrem diversas outras artes – como a Música, o Teatro, a Literatura, a Fotografia e as demais Artes Visuais – o Cinema terminou por vir constituir a partir de si mesmo uma linguagem própria e uma indústria também específica, e ao par disto não cessou de interferir na história contemporânea ao mesmo tempo em que seu discurso e suas práticas foram se transformando com esta mesma história contemporânea. Eis aqui a raiz de um complexo jogo de interrelações possíveis que têm permitido que o Cinema se mostre simultaneamente como ‘fonte’, ‘tecnologia’, ‘sujeito’ e ‘meio de representação’ para a História.
No seu aspecto mais irredutível o Cinema – incluindo todo o imenso conjunto das obras cinematográficas que já foram produzidas e também as práticas e discursos que sobre elas se estabelecem – pode ser considerado nos dias de hoje uma fonte primordial e inesgotável para o trabalho historiográfico. A partir de uma fonte fílmica, e a partir da análise dos discursos e práticas cinematográficas relacionados aos diversos contextos contemporâneos, os historiadores podem apreender de uma nova perspectiva a própria história do século XX e da contemporaneidade. De igual maneira, como se verá mais adiante, os historiadores políticos e culturais podem examinar os diversos usos, recepções e apropriações dos discursos, práticas e obras cinematográficas.
Para além deste fato mais evidente de que o Cinema – enquanto ‘forma de expressão cultural’ especificamente contemporânea – fornece fontes extraordinariamente significativas para os estudos históricos sobre a própria época em que foi e está sendo produzido, uma outra relação fulcral entre História e Cinema pode aparecer através da dimensão deste último como ‘representação’. O Cinema não é apenas uma forma de expressão cultural, mas também um ‘meio de representação’. Através de um filme representa-se algo, seja uma realidade percebida e interpretada, ou seja um mundo imaginário livremente criado pelos autores de um filme.
Para o âmbito das relações entre Cinema e História, interessa particularmente a possibilidade de a obra cinematográfica funcionar como meio de representação ou como veículo interpretante de realidades históricas específicas, ou, ainda, como linguagem que se abre livremente para a imaginação histórica. Em um caso, estaremos tratando dos chamados ‘filmes históricos’ – entendidos aqui como aqueles filmes que buscam representar ou estetizar eventos ou processos históricos conhecidos, e que incluem entre outras as categorias dos ‘filmes épicos’ e também dos filmes históricos que apresentam uma versão romanceada de eventos ou vidas de personagens históricos. Em outro caso, será possível destacar ainda aqueles filmes que chamaremos de ‘filmes de ambientação histórica’, aqui considerando os filmes que se referem a enredos criados livremente mas sobre um contexto histórico bem estabelecido.
Ao lado dos ‘filmes históricos’ e dos ‘filmes de ambientação histórica’, uma terceira e importante modalidade ainda a ser discutida neste tipo de relação entre o Cinema e a representação histórica é a dos ‘documentários históricos’ – que podem ser definidos mais especificamente como trabalhos de representação historiográfica através de filmes, diferenciando-se dos atrás mencionados filmes históricos seja pelo rigor documental em que se apóiam, seja pelo fato de que neles o fator estético é deslocado para segundo plano e não é quem conduz os rumos da narrativa ou da construção fílmica. Desta maneira, enquanto o ‘filme histórico’ narra criativamente um evento ou processo histórico, tomando-o para enredo, o ‘documentário historiográfico’ analisa os acontecimentos à maneira dos historiadores, comparando depoimentos e fontes, sobrepondo imagens da época, analisando situações através da lógica historiográfica e do raciocínio hipotético-dedutivo, e encaminhando uma série de operações que são algo similares àquelas das quais os historiadores lançam mão ao examinar um processo histórico em obra historiográfica em forma de livro. Assim, o fio condutor do ‘documentário historiográfico’ é essencialmente a análise de eventos e processos históricos, e não a mera narração destes processos mediada pelo mesmo tipo de estetização que aparece nos filmes ficcionais. Vale ainda lembrar que, enquanto o ‘filme histórico’ oculta as fontes em que se apoiou, o ‘documentário histórico’ desenvolve-se habitualmente explicitando suas fontes para os espectadores e marcando uma distância clara entre o discurso do cineasta-historiador e estas mesmas fontes (o discurso dos outros, as imagens e documentos de época, e assim por diante). Em suma, ressalvadas as especificidades de cada linguagem e as características pessoais de cada autor, o cineasta-historiador age analogamente ao que faria um historiador tradicional que escreve um livro de História nos dias de hoje.
Em síntese – sobre o ‘filme histórico’, o ‘filme de ambientação histórica’, e o ‘documentário histórico’, entre outros tipos similares que poderiam também ser mencionados – pode-se dizer que estas três modalidades fílmicas relacionadas à História (considerada aqui como objeto de conhecimento) correspondem respectivamente, na Literatura, ao ‘romance histórico’ propriamente dito, à obra de ficção com ambientação histórica, e às próprias representações historiográficas produzidas pelos historiadores profissionais ou diletantes.
Sobre todos estes tipos de ‘filmes de História’ (no sentido amplo), é importante ressaltar ainda que eles possuem uma dupla natureza, uma espécie de duplo vínculo em relação à História. Além de serem ‘fontes’ importantes para a percepção de processos históricos diversificados que se dão na própria época de sua produção, tal como aliás ocorre com os demais filmes (inclusive os de ficção), os ‘filmes de História’ são também fontes primordiais para o estudo das próprias representações historiográficas. Neste sentido, além de ser possível neste tipo de fontes cinematográficas estudar a História (enquanto objeto de conhecimento), é possível estudar a partir deles as próprias representações e concepções historiográficas (isto é, a História enquanto campo de conhecimento), discutindo a Historiografia nos seus diversos níveis. Pode-se dizer que através dos ‘filmes de História’ de diversos tipos o Cinema começa a penetrar de diversificadas maneiras no próprio mundo dos historiadores, e não apenas no mundo de acontecimentos históricos que os historiadores examinam com algum tipo de distanciamento.
As possibilidades acima apresentadas de relacionar Cinema e representação histórica levam a pensar também em uma terceira relação importante que, agora, aparece através da mediação dos saberes pedagógicos e educativos. O Cinema através de sua produção fílmica, e não apenas dos documentários históricos, também pode ser utilizado para ensinar História – ou, mais ainda, para veicular e até impor uma determinada visão da História. Entramos aqui em uma outra possibilidade de apreensão das relações possíveis entre Cinema e História. Tanto os historiadores podem estudar os usos políticos e educacionais que têm se mostrado possíveis através do Cinema, como de igual maneira os pedagogos (e também os professores de história) podem utilizar o Cinema para difundir o saber histórico e historiográfico de uma determinada maneira[i].
Para além do papel do filme como veículo final de uma determinada representação historiográfica – isto é, como um ‘meio’ propriamente dito para esta representação historiográfica – é importante ressaltar que a filmagem pode funcionar ainda como ‘instrumento de pesquisa’ importante para a prática historiográfica, tenha esta como produto final um filme ou um livro. Assim, se o uso do gravador e da fotografia veio trazer instrumentos importantíssimos para os antropólogos e sociólogos dos últimos tempos, as práticas cinematográficas vieram trazer uma contribuição fundamental ao acenarem com a possibilidade do uso filmagem nas pesquisas ligadas às ciências humanas, aqui considerando que a filmagem permite a captação de imagens-som em movimento para posterior análise (por exemplo, o ritual de uma tribo indígena ou as imagens de um determinado distúrbio social).
O Cinema, assim, apresenta-se como tecnologia adicional para a História Oral – acrescentando uma nova dimensão à coleta de depoimentos – mas também para outras inúmeras modalidades historiográficas como a História da Cultura Material ou a História do Cotidiano (basta pensar na filmagem de estruturas urbanas para posterior análise pelo historiador da cultura material, ou na filmagem de situações da vida cotidiana para interpretação posterior pelo historiador do cotidiano)[ii]. A tecnologia cinematográfica, por fim, mostra-se magnífico instrumento para a História Imediata, aqui entendida como aquela modalidade da História em que o historiador participa mais diretamente do próprio processo ou situação histórica que está investigando.
Em vista do que se disse até aqui, cada vez mais a historiografia dos últimos tempos tem se dado conta das múltiplas potencialidades do Cinema simultaneamente como fonte para o estudo da história, como veículo privilegiado para a difusão das próprias representações historiográficas, e como tecnologia auxiliar para a História. Naturalmente que, já que o próprio Cinema é relativamente recente na história, seu uso pela Historiografia também é recente. Além disto, acresce que também não deixa de ser recente mesmo a utilização pela historiografia de fontes não propriamente documentais ou textuais. A primeira metade do século XX, como se sabe, marca precisamente a expansão das concepções de ‘fonte histórica’, já que trouxe à tona um interesse mais vivo por fontes iconográficas, por fontes da cultura material, pela história oral, e por tantas novas possibilidades de materiais para serem trabalhados pelos historiadores. A fonte fílmica, que aliás integra ao discurso verbal as dimensões da visualidade e da oralidade, enquadra-se compreensivelmente neste mesmo movimento de expansão de temáticas e de possibilidades de novas fontes historiográficas.
Uma última relação possível entre Cinema e História – para além de seu papel como ‘expressão’, ‘representação’ e ‘tecnologia’ – vincula-se ao fato de que o Cinema também pode corresponder a uma ‘ação’ que interfere na História (não mais a História no sentido de campo do saber, mas a própria História realizada pelos homens na sua vida social). Veremos mais adiante que, do Cinema, podem se apropriar poderes diversos que “agem” na História; e que, de outro lado, o Cinema também pode se apresentar como campo de resistência a diversos poderes instituídos. Por isto, vale dizer que, em todos estes casos, o Cinema tem sido um poderoso ‘agente histórico’ desde os anos que o viram surgir.
O Cinema apresenta-se como ‘agente da história’ seja através da Indústria Cultural, seja através das ações estatais e dos diversos usos políticos, seja através da difusão de diversificadas ideologias, ou seja através da resistência a estas mesmas forças. Isto sem contar que – através de uma obra fílmica mais específica – diversos agentes estão freqüentemente atuando de modo bastante significativo na História. Aqui, portanto, o Cinema assume – para muito além de sua dimensão como meio e como objeto de estudo – a função de sujeito da História.
O Cinema como ‘agente histórico’
Acompanhando as dimensões norteadoras atrás citadas, será possível adentrar em seguida a complexa relação entre História e Cinema a partir de alguns ângulos que convém precisar. Discutiremos três dos eixos fundamentais atrás estabelecidos, que permitem avaliar o cinema como ‘agente da história’, o cinema como ‘fonte histórica’, e o cinema como meio para produzir uma nova forma de ‘representação historiográfica’ ou de transmissão do conhecimento histórico.
Em primeiro lugar, consideraremos a idéia de que acima de tudo o Cinema pode ser visto ele mesmo como agente histórico. O Cinema mostra-se um ‘agente histórico’ importante no sentido de que interfere direta ou indiretamente na História. Ou, mais propriamente, poderíamos acrescentar que o Cinema tem se mostrado um instrumento particularmente importante ou um veículo significativo para a ação dos vários agentes históricos, para a interferência destes agentes na própria História. O Cinema, então, mostra-se como poderoso instrumento de difusão ideológica, ou mesmo como arma imprescindível no seio de um bem articulado sistema de propaganda e marketing. Por isso mesmo, em uma primeira instância, já se mostra bastante interessante para os historiadores contemporâneos a possibilidade de examinar sistematicamente as relações entre Cinema e Poder, o que – como se verá adiante – fará da arte fílmica e das práticas cinematográficas um importante objeto de estudo para a História Política (e não apenas para a História Cultural).
Essa relação entre Poder e Cinema é múltipla e igualmente complexa. Desde cedo, as diversas agências associadas aos poderes instituídos compreenderam a importância do Cinema como veículo de comunicação, de difusão e imposição de idéias e ideologias[iii]. Trate-se de um documentário, de um filme de propaganda política, ou de uma obra de ficção cinematográfica, o Cinema tem sido utilizado em diversas ocasiões como instrumento de dominação, de imposição hegemônica e de manipulação pelos agentes sociais ligados ao poder instituído (instituições governamentais, partidos políticos, igrejas, associações diversas), e também por grupos sociais diversos que têm sua representação social junto a estes poderes instituídos. Essa tem sido sem dúvida uma primeira relação política importante a ser considerada.
Por outro lado, o Cinema também conservou obviamente a sua autonomia em relação aos poderes instituídos, e por isso ocorre que também tenha funcionado como Contrapoder. Neste sentido, se o Cinema com sua produção fílmica pode ser examinado como ‘instrumento de dominação’ e de imposição hegemônica, ele também pode ser examinado como meio de ‘resistência’. Daí que as fontes associadas ao Cinema podem ser analisadas tanto como documentação importante para compreensão dos mecanismos e processos de dominação, como também podem ser encaradas como documentação significativa que traz e revela dentro de si as múltiplas formas de resistências, as diversificadas vozes sociais (inclusive as que não encontram representação junto ao Poder Instituído), e de resto os variados padrões de representação associados a uma sociedade.
O Cinema – e a sua realização última que é o Filme – é sempre construção polifônica, para utilizar uma metáfora emprestada à Música. Nele cantam inevitavelmente todas as vozes sociais, não apenas as que invadem a cena através de seus discursos como também as que nela penetram através da imagem. Ainda que uma determinada produção fílmica seja montada para a expressão de um modo de vida que é o de alguma classe dominante, ou ainda que o filme seja empregado como parte de estratégias políticas específicas – e ainda que os diálogos principais postos em cena atendam ou expressem interesses sociais e políticos específicos – haverá sempre algo que se impõe ou dá-se a perceber através da imagem e que pode revelar inesperadamente os demais modos de vida, ou algo que se há de impor como contra-discurso e entredito que se constrói à sombra dos diálogos que entretecem o discurso principal.
Apenas para dar um exemplo de estudo de caso que permite trazer à tona estas relações, o Cinema apresentou-se no Brasil do Estado Novo com todas estas facetas. Foi utilizado como instrumento de doutrinação política através dos documentários produzidos pelo DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda do Governo Vargas), como veículo para a alienação através de alguns filmes e chanchadas de ficção, mas também como instrumento de resistência e contrapoder a partir diversos outros filmes de ficção. Para considerar o caso dos filmes satíricos, é sempre importante lembrar que a obra de humor artístico pode veicular por diversas vezes críticas ao Poder Instituído que não poderiam circular através do discurso “sério”. Essas relações várias, por outro lado, podem aparecer em algumas ocasiões dentro de um único filme, o que mostra a potencialidade da obra cinematográfica como produto complexo.
Um filme, enfim, pode se apresentar como um projeto para agir sobre a sociedade, para formar opinião, para iludir ou denunciar. Portanto, um projeto para interferir na História, por trás do qual podem se esconder ou se explicitar desde os interesses políticos de diversas procedências até os interesses mercadológicos encaminhados pela Indústria Cultural. E, certamente, através de um filme podem também agir os indivíduos que representam posições específicas. Lembremos aqui os polêmicos documentários de Michael Moore – como Tiros em Columbine (2002) ou Fahrenheit 9/11 (2004) – onde o autor, valendo-se do gênero Documentário, na verdade o utiliza de uma nova maneira, não apenas para registro e interpretação da realidade como também com vistas a uma explícita e imediata interferência nesta realidade[iv]. Assim, ao ocupar a posição de entrevistador, o autor instiga, provoca, assume nitidamente uma posição, impõe situações que querem mudar o curso da realidade examinada. Age, portanto, sobre a História.
Naturalmente que, além dos usos políticos voluntários e involuntários, conscientes e inconscientes, os filmes também se apresentam como registro das representações e visões de mundo presentes nas sociedades que os produziram. Tal como se disse, através de uma obra fílmica expressam-se de maneira complexa várias vozes sociais e diversificadas perspectivas culturais. O Cinema, considerado como agente histórico, pode ser por isto compreendido mais propriamente como um feixe de agentes históricos diversos – e se ele permite um estudo sistematizado das relações políticas, permite também um estudo acurado das práticas e representações culturais. Daí seu simultâneo interesse tanto para a História Política como para a História Cultural.
O Cinema como ‘fonte histórica’
Se o Cinema é ‘agente da História’ no sentido de que interfere direta ou indiretamente na História, ele também é interferido todo o tempo pela História, que o determina nos seus múltiplos aspectos. Vale dizer, o cinema é ‘produto da História’ – e, como todo produto, um excelente meio para a observação do ‘lugar que o produz’, isto é, a Sociedade que o contextualiza, que define a sua própria linguagem possível, que estabelece os seus fazeres, que institui as suas temáticas. Por isto, qualquer obra cinematográfica – seja um documentário ou uma pura ficção – é sempre portadora de retratos, de marcas e de indícios significativos da Sociedade que a produziu. É neste sentido que as obras cinematográficas devem ser tratadas pelo historiador como ‘fontes históricas’ significativas para o estudo das sociedades que produzem filmes, o que inclui todos os gêneros fílmicos possíveis. A mais fantasiosa obra cinematográfica de ficção traz por trás de si ideologias, imaginários, relações de poder, padrões de cultura. Esta afirmação, que de resto também é perfeitamente válida para as obras de Literatura, dá suporte ao fato de que a fonte cinematográfica tem sido utilizada com cada vez mais freqüência pelos historiadores contemporâneos.
O lugar que produz o Cinema é também o lugar que o recebe, de modo que a fonte fílmica pode dar a compreender uma Sociedade simultaneamente a partir do sistema que o produz e do seu universo de recepção. O público consumidor e a crítica inscrevem-se desde já na rede que produz o filme, conjuntamente com os demais fatores que atuam na sua Produção, e isto porque o público receptor é sempre levado em consideração nos momentos em que o filme é elaborado. As competências e expectativas do consumo, enfim, são antecipadas no momento em que é produzida a obra cinematográfica, de modo que analisar um filme é analisar também o público que irá consumi-lo[v].
Com relação a estes e outros aspectos, a fonte cinematográfica, particularmente a fonte fílmica, torna-se evidentemente uma documentação imprescindível para a História Cultural – uma vez que ela revela imaginários, visões de mundo, padrões de comportamento, mentalidades, sistemas de hábitos, hierarquias sociais cristalizadas em formações discursivas, e tantos outros aspectos vinculados à de uma determinada sociedade historicamente localizada. Mas como a Indústria Cinematográfica contempla em todas estas instâncias relações de poder – seja no que concerne à sua inserção no universo da Indústria Cultural, seja no que se refere à sua apropriação pelos poderes públicos e privados – é natural que pelos estudos históricos do Cinema se interessem também a História Política, a História Social, e mesmo a História Econômica em sua inserção com estas modalidades historiográficas.
É muito importante para o historiador avançar na compreensão dos poderes que atravessam o Cinema, alguns interferindo diretamente na feitura de filmes. Apenas para nos atermos ao âmbito dos poderes que circulam na esfera da Indústria Cultural, iremos encontrar todo um conjunto de poderes e micropoderes que enredam a feitura de um filme, e isto variando de acordo com os diversos contextos e com as diversas fases da História do Cinema. O Cinema que surge com os irmãos Lumière irá logo empreender uma criativa luta para se transformar de mera tecnologia em Arte, e a partir daí se empenha em construir uma linguagem inteiramente nova. O Cinema que convive com a Televisão, por exemplo, é já outro e deve confrontar-se com a idéia de que seus objetos fílmicos em determinado momento passarão das grandes Telas ao circuito da Televisão (e mais tarde, já nas últimas décadas do século XX, ao circuito da televisão por assinatura e das locadoras do vídeo). Tudo isto interfere na sua feitura, porque a Indústria Cultural almeja explorar todas as mídias e mercados, e neste sentido seus produtos devem ser polivalentes e adaptativos com vistas à geração de lucros crescentes.
Haverá mesmo filmes feitos especialmente pela Televisão, e outros previstos para gerarem séries para a Televisão. Quando se escreve um roteiro de filme para televisão, deve-se antecipar as reações de um telespectador que não está mais preso por duas horas dentro de um recinto fechado de sessão cinematográfica para a qual já comprometeu o valor de um ingresso. Esse novo espectador que assiste na televisão a um filme – seja um filme que já percorreu o circuito das salas de cinema ou um filme tipicamente televisivo – possui literalmente nas mãos um novo poder: o zapping – esta possibilidade de apertar um botão no controle remoto e mudar o canal. Os roteiros, desta forma, não podem ser concebidos livremente, pois desde o instante da sua gestação já sofrem a presença desta formidável multidão de micropoderes. É preciso capturar a atenção do espectador comum, e neste sentido as emissoras pressionarão roteiristas para fazerem cortes nos seus roteiros de modo a conseguirem mais excitação, mais suspense, por vezes maior velocidade ou maior nível de adaptação à competência do espectador comum. Desta maneira, os grandes interesses das emissoras e as pequenas expectativas do telespectador comum se enredam para pressionar a feitura do filme. Em operação inversa, ocorre ao historiador que ele pode partir de um filme – aqui tomado como fonte histórica – para precisamente desvendar esta rede de poderes e micropoderes, de expectativas de mercado e de competências espectadoras, de padrões culturais impostos pela mídia e de representações culturais que surgem espontaneamente. Ou seja, partindo de um produto, ele estará apto a decifrar a sociedade que o produziu.
Em vista deste mundo de novas possibilidades historiográficas, examinaremos nos próximos parágrafos os diversos tipos de fontes relacionadas com o Cinema, e de que podem ser valer os historiadores do mundo contemporâneo. Será necessário considerar aqui toda uma gama de fontes importantes, desde aquelas geradas para e pela produção de um filme – como roteiros, sinopses, cenários, registros de marcações de cenas, mas também contratos, propagandas, críticas de cinema, receitas e despesas de produção – até aquela que é a fonte por excelência: o filme.
De fato, no que se refere às fontes primárias para o estudo da História do Cinema, ou então da História através do Cinema, a primeira fonte mais óbvia a se considerar é o próprio filme, o produto final da arte cinematográfica. Neste sentido, um ponto de partida metodológico para examinar sistematicamente a relação entre Cinema e História deve vir ancorado na compreensão de que o filme, pretenda ele ser imagem ou não da realidade, e enquadre-se dentro de um dos gêneros documentários ou dentro de um dos gêneros de ficção, é em todos estes casos História. Não importa se o filme pretende ser um retrato, uma intriga autêntica, ou pura invenção, sempre ele estará sendo produzido dentro da História e sujeito às dimensões sociais e culturais que decorrem da História – isto independente da vontade dos que contribuíram e interferiram para a sua elaboração.
Assim, o mais fantasioso filme de ficção científica não expressa senão as possibilidades de uma realidade histórica, seja como retratação dissimulada, como inversão, como tendência discursiva que o estrutura, como visão de mundo que o informa e que o enforma (que lhe dá forma), e assim por diante. É por isto, tal como se observou antes, que é sempre possível dizer que a ficção, por mais criativa e imaginativa que seja, permite em todos os casos uma aguda leitura da realidade social e histórica, o que implica em dizer que o historiador ou o analista da fonte documental cinematográfica sempre poderá almejar enxergar por trás de um filme algo da sociedade que o produziu, e que poderá analisar a fonte fílmica como um produto complexo que se vê potencializado pelo fato de que para ela confluem diversos tipos de linguagens e materiais discursivos denunciadores de uma época, de caminhos culturais específicos, de agentes sociais diversos, de relações de poder bem definidas, de visões de mundo multi-diversificadas.
Apenas para registrar um exemplo, a Los Angeles do século XXI que nos é apresentada em Blade Runner (1982) – um filme que intermescla os gêneros da ficção científica e do filme policial – é uma Los Angeles certamente fictícia, imaginada pelo romancista de cujo texto foi extraído o enredo e pelo roteirista da película[vi]. Contudo, uma análise acurada poderia nos mostrar como são projetadas nesta Los Angeles imaginária vários dos medos típicos dos americanos ou do homem moderno, de modo geral.
A Los Angeles de Blade Runner, com seu submundo formado por ruas estreitas e poluídas habitadas por uma população que se reparte em etnias e dialetos, e que se vê contraponteado por prédios de centenas de andares e por uma sofisticada tecnologia, é certamente o espaço imaginário de projeção de alguns dos grandes medos americanos: a poluição, a violência, a escassez alimentar, a opressão tecnológica, a presença de migrantes vindos de outros países, a ameaça da perda de uma identidade propriamente “americana”, os desastres ecológicos que no filme aparecem sob a forma de uma chuva ácida com a qual têm de conviver os habitantes deste futuro imaginário. Os replicantes – andróides criados pelos homens do futuro – expressam com sua revolta os temores dos homens de hoje diante de uma tecnologia que pode sair do controle, da criatura que ameaça o criador – tema que de resto sempre foi caro à ficção científica já clássica.
De igual maneira, na temática de um mundo dominado e controlado por uma mega-corporação, aparecem nos labirintos discursivos de Blade Runner os receios diante de um futuro onde a Empresa Capitalista passa a assumir o papel de Estado e a ter plenos poderes sobre a vida e a morte de todos os indivíduos – o que, em última instância, traz à tona o temor diante da possibilidade da perda de liberdade individual. Para além disto, as relações entre os homens e a Memória, na qual se apóiam para a construção de sua identidade individual e que no entanto lhes é tão inconsistente, são trazidas a nu na famosa cena que se refere a uma replicante que não possui sequer a consciência de ser uma replicante (isto é, não-humana), e que se depara com a cruel realidade de que a memória que foi nela implantada não corresponde a nenhuma vivência efetiva[vii]. As relações com Deus e a Morte por fim, aparecem na parábola que dá forma geral ao filme através de um enredo onde os replicantes procuram obstinadamente os seus criadores na esperança de prolongarem a própria vida, e que traz como um dos desfechos a cena da Criatura que termina por assassinar o seu Criador, evocando as intrincadas relações psicológicas que permeiam desde sempre as relações entre o homem e Deus através das realidades religiosas por ele mesmo engendradas na história real. Por fim, Blade Runner levanta em diversas ocasiões um questionamento típico desta nossa época que entremeia o Real e o Virtual e que, para além disto, ensejou perturbadoras reflexões filosóficas sobre a desconstrução do sujeito, esta desconstrução tão típica da pós-modernidade e que vem abalar fortemente as certezas do homem contemporâneo em relação à sua própria existência objetiva[viii]. Eis, portanto, um exemplo entre tantos que poderiam ser dados de que toda a ficção está sempre impregnada da realidade vivida, seja com a intenção ou sem a intenção de seu autor.
É por isto que, a princípio, qualquer filme – seja um policial, um filme de ficção científica, uma pornô-chanchada, um filme de amor – pode ser constituído em fonte pelo historiador que esteja interessado em compreender a sociedade que o produziu e que o tornou possível como obra. Desnecessário dizer que um filme ambientado na Idade Média que seja elaborado hoje falará ao historiador muito mais sobre a Idade Contemporânea do que sobre a Idade Média. Seria de se perguntar o quanto o filme Cruzada de Ridley Scott (2005) – que acompanha a narrativa de uma cruzada medieval ocorrida em 1185 – fala-nos por exemplo do impacto da Guerra do Iraque e de outros confrontos contemporâneos envolvendo nações ocidentais e o mundo islâmico. Ou, para lembrar outro filme de Scott, até que ponto O Gladiador (2004) – ao abordar o Império Romano – não nos fala do Império Americano, do Jogo de Poder, da corrupção e decadência?
É ainda oportuno lembrar que os filmes também podem ser trabalhados em série, e não apenas a partir de análises individualizadas de seus discursos e de seu enredo. Pode-se estudar a evolução de interesses temáticos a partir de um levantamento geral de obras fílmicas em um determinado período. Se os tempos recentes mostram a renovação de interesses por filmes ambientados na Idade Média ou em tempos antigos, isso certamente diz algo ao historiador sobre o atual contexto sócio-cultural, ou mesmo político, que permitiu a renovação deste interesse. Com a produção ligada ao Cinema ocorre, de resto, o que também se verifica para a produção literatura ou artística em geral. A emergência de determinado tipo de obras, os temas que por elas circulam, o seu vocabulário, as novidades formais que se tornam possíveis ... tudo isto nos fala ainda mais dos receptores da obra do que de seus próprios autores individualizados.
As possibilidades de fontes históricas relativas ao Cinema não se esgotam nesta obra final que é o filme propriamente dito. Para além desta fonte mais óbvia, e que pode ser examinada sob sua forma de registro em Vídeo, é preciso considerar ainda que a fonte fílmica gera outros tipos de fontes como substratos, etapas e instrumentos de trabalho. Por exemplo. O ‘Roteiro’ mostra-se como um tipo de transposição literária do filme, que terá sido em algum momento tanto um instrumento de trabalho para os produtores do filme, como terá se convertido em outro momento em obra literária por si mesma, posta à venda para a leitura de interessados. Este tipo de fonte também apresenta grande utilidade para o historiador e estudiosos de Ciências de Comunicação que estudam o Cinema. Naturalmente que os métodos de análise que se direcionam para o ‘filme’ na sua forma de imagens projetadas na tela – e que deste modo se apresenta como uma obra integral que incorpora diversas linguagens – devem ser diferenciados dos métodos a serem empregados para a análise do Roteiro, transposição do enredo e diálogos do filme para o texto escrito.
Para além disto, outros tipos de substratos de filmes também podem ser considerados, como a ‘Sinopse’ – que consiste em um tipo especializado de Resumo do filme, e que se diferencia radicalmente do Roteiro pelo seu caráter breve e sintético. Por outro lado, é preciso ainda considerar que o Filme também gera documentação sobre o Filme. Por exemplo, a Crítica deixa registros textuais de suas leituras sobre filmes específicos através de ‘Crônicas Especializadas’, normalmente publicadas em Jornais e Revistas. Este tipo de fonte também deve ser abordado pelo historiador do Cinema, com a plena consciência de que neste caso ele não estará mais estudando o filme como fonte direta, mas sim examinando um discurso que se estabelece sobre o filme. Os depoimentos dos próprios autores e envolvidos na produção do filme também podem ser enquadrados nesta modalidade de fontes sobre o Cinema, e um outro substrato possível são as propagandas sobre o produto cinematográfico, seja a propaganda sobre o filme que vai às telas de cinema (ou de televisão, posteriormente), seja a propaganda sobre o filme convertido em vídeo para circular nas chamadas locadoras.
Há ainda a documentação propriamente dita sobre Cinema (no sentido de documentação registrada através da escrita). Tal como já se disse o Cinema também gera apropriações, manipulações e resistências. Estas relações, que permeiam a própria interação entre História e Cinema, também geram inúmeros tipos de documentação que podem ser utilizados pelos historiadores. Pode-se estudar por exemplo a documentação oficial, institucional e governamental sobre a produção cinematográfica: Legislação sobre a normatização e controle do Cinema, documentos da Censura, e assim por diante. Apenas para dar um exemplo, os sucessivos governos brasileiros exerceram cada qual um tipo de política cultural para a produção cinematográfica; alguns, como o governo do Estado Novo, criaram mesmo órgãos para produzir filmes para fins de Propaganda Governamental, para a difusão de ideologias, e assim por diante. O Cinema, enfim, está sujeito a este tipo de apropriações, embora ao mesmo tempo tem um grau de autonomia enquanto obra de arte que deve ser considerado.
Fontes ensaísticas sobre o Filme, escritas nos vários períodos da História do Cinema, também podem revelar como o Cinema tem sido visto pela Sociedade, por setores específicos desta sociedade, e por agentes históricos e artísticos vários. Desta forma, os Ensaios sobre o Cinema podem ser tomados como fontes para a análise das várias visões de mundo sobre o Cinema. Assim, por exemplo, diversos cineastas escreveram textos importantes sobre o Cinema, como Jean Epstein[i], Jean Renoir[ii], Serguei Eisenstein[iii], Jean-Claude Carrière[iv], François Truffaut[v], e tantos outros. Da mesma forma, outros escreveram autobiografias que certamente elucidam suas relações com o Cinema, bem como aspectos de sua inserção como cineastas em uma sociedade produtora e consumidora de filmes. Entre estes podemos citar Luís Buñuel[vi] e Frederico Fellini[vii], que também nos oferece outro exemplo de fonte importante para compreender o pensamento, as práticas e as representações dos autores de filmes: a Entrevista[viii]. É também o caso das entrevistas de François Truffaut [ix]. Todos estes tipos de fontes podem ser trabalhados pelos historiadores em conexão com fontes fílmicas propriamente ditas, apenas para considerar os textos de autoria dos próprios produtores diretos de filmes.
José D'Assunção Barros
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