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BEM-VINDO!

Bem-vindo ao site do Laboratório de Pesquisas em Teoria da História e Interdisciplinaridades! Tal projeto foi elaborado por alunos da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro do Instituto Multidisciplinar, sob a coordenação do professor Dr. José D'Assunção Barros, com o objetivo de propor relações entre história-cinema e muito mais!


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INTERDISCIPLINARIDADE: AS PONTES INTERDISCIPLINARES QUE PODEM UNIR OS DIVERSOS SABERES

Interdisciplinaridade e Disciplinas por José D'Assunção Barros

Em uma de suas acepções mais correntes, a Interdisciplinaridade pode ser compreendida como uma atitude, prática ou disposição que se estabelece entre os praticantes de distintos campos de saber, e que favorece o diálogo entre duas ou mais disciplinas e a ultrapassagem das perspectivas mais rígidas sobre o conhecimento que terminam por acondicionar as diferentes modalidades científicas em compartimentos estanques. Na relação interdisciplinar, dois saberes não apenas dialogam, como também permitem se renovar reciprocamente, um iluminado por outro. Para nos uma primeira aproximação desta ordem de riquezas e problemas que é apresentada pela perspectiva interdisciplinar, será útil que tenhamos, antes de tudo, uma clara e correta compreensão sobre o que é, afinal de contas, uma disciplina – palavra que deverá aqui ser compreendida no seu sentido de ‘campo de conhecimento’ ou de ‘modalidade de saber’[i]. Ademais, será importante compreender que as disciplinas não configuram, de maneira alguma, ambientes que os seres humanos puderam simplesmente encontrar como alguém que descobre um continente novo, em uma viagem de explorações através de um vasto oceano formado por inúmeros objetos de estudo. Na verdade, o que ocorre é que os seres humanos literalmente precisaram inventar cada uma das disciplinas que hoje lhes são tão familiares neste complexo universo de saberes a partir dos quais se organiza o conhecimento humano e a prática científica. A História, Biologia, Medicina, Física, ou quaisquer outros âmbitos de pesquisa, ensino e práticas profissionais, não existiram sempre. Quando surgiram, estes campos de saber ou disciplinas tampouco nasceram prontos e acabados.

Cada disciplina, de fato, formou-se a partir de uma história particular; além disso, para continuar a existir, precisou e precisa prosseguir em um processo de permanente transformação e atualização no interior dessa história, a qual se conecta de uma maneira e de outra com as histórias de todos os demais campos disciplinares. Ademais, há inúmeras dimensões reciprocamente implicadas para a formação e continuidade de uma disciplina. Entre elas, podemos destacar a produção de instâncias teóricas e metodológicas, a constituição de uma linguagem ou de um repertório discursivo comum aos seus praticantes, a definição e constante redefinição de seus objetos de estudo, a possibilidade de identificar uma singularidade que diferencia cada disciplina de outros saberes, uma complexidade gradual interna que termina por gerar novas modalidades no interior da disciplina, e, por fim, o mais importante: a rede humana que constitui este ou aquele campo de saber em especial.

Outro aspecto fundamental para a compreensão das condições às quais estão sujeitas as diversas disciplinas é que elas não são compartimentos estanques, isolados uns dos outros, definidos de uma vez por todas no que concerne aos seus objetos e práticas, ainda que estas imagens sejam por vezes divulgadas ou incentivadas quando se elabora uma reflexão sobre a divisão do conhecimento humano nas suas inúmeras práticas e campos de estudo ou de pesquisa. Tampouco as disciplinas configuram campos estáticos. Ao contrário, as disciplinas transformam-se internamente, redefinem-se, expandem-se ou se contraem, tendem a se tornar mais complexas na medida em que vivem a sua própria história ou se deparam com novos desafios e problemas. Além disso, conforme sustentaremos neste artigo, as disciplinas comunicam-se necessariamente entre si, deslocam-se umas em relação às outras, confrontam-se, interpenetram-se, sintonizam-se, harmonizam-se. Particularmente, para além de pensá-las como organismos que se enfrentam, interagem ou disputam territórios, poderíamos pensar as disciplinas como notas musicais que repercutem umas sobre as outras, às vezes produzindo novos acordes e sempre resultando em novos afloramentos sonoros que passam a compor essa fascinante sinfonia que é o saber humano.

Metáforas à parte, o principal desafio deste texto será o de refletir sobre as instâncias que permitem que os vários saberes dialoguem entre si, estabelecendo diálogos interdisciplinares efetivos. Neste artigo, veremos que as grandes pontes interdisciplinares – aqueles caminhos ou instâncias que se abrem ao diálogo entre duas ou mais disciplinas – são principalmente a Teoria, o Método, a possibilidade de compartilhamento de temas, o Discurso ou forma de expressão de cada saber, ou a própria rede humana que atua para a constituição de conhecimento a partir dos parâmetros de cada disciplina. Por ora, gostaríamos de lembrar ainda que os objetos de estudo e os campos temáticos de interesse das diversas disciplinas não surgiram necessariamente com elas. Os objetos de interesse científico podem migrar, em determinado momento, de um campo de saber a outro. Ou mesmo – ainda que se conservando no horizonte temático do campo de saber que originalmente os constituiu – certos objetos de estudo podem passar a ser compartilhados por novos campos de saber. É preciso se ter consciência, ademais, de que a leitura acadêmica que hoje se faz de um universo de saberes partilhado em campos muito específicos – quase à maneira de caixas ou compartimentos no interior dos quais deveriam necessariamente se situar os intelectuais especializados – está longe de ter sempre orientado os autores e as comunidades científicas das várias épocas.

No século XVIII, por exemplo, não era incomum que os filósofos iluministas – amparados por sua concepção humanista e sua perspectiva enciclopédica – desenvolvessem um intenso interesse por saberes vários. Alguns deles escreveram obras ou desenvolveram pesquisas que hoje fazem parte da história de disciplinas variadas. Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) – um dos mais notórios dos filósofos iluministas do século XVIII – escreveu livros que hoje seriam facilmente incorporáveis aos âmbitos da Educação, da História, Sociologia, Ciência Política, Economia, Linguística, Botânica ou Crítica Musical, além da própria Filosofia[ii]. Além disso, Rousseau era literato, autor de romances e de literatura criativa em diversificados gêneros, e também músico, tendo escrito uma ópera e outras peças musicais[iii]. A imaginação, identidade teórica e a prática autoral de filósofos humanistas como Rousseau, portanto, ainda não operava nos limites do mesmo quadro disciplinar e tendente à especialização que hoje nos é tão familiar, e que depois assumiria uma arquitetura mais definida nos meios acadêmicos e universitários. O mesmo perfil criativo e multidiversificado – ou mesmo interdisciplinar – se quisermos nos pôr à escuta das implicações de uma palavra que ainda não era utilizada na época[iv] – será encontrado em cada momento no qual nos propusermos a redesenhar a identidade intelectual de muitos dos outros grandes pensadores do século XVIII, como Voltaire (1694-1778), Montesquieu (1689-1755), ou David Hume (1711-1776)[v], assim como também de outros homens e mulheres de saber em diversas épocas históricas. Para trás e para diante no tempo, podemos encontrar pensadores como Aristóteles ou Platão, cujas vozes nos chegam da Antiguidade, ou como Marx e Max Weber, pensadores da idade moderna, que transitaram confortavelmente pelos mais variados âmbitos de estudo.

Com isso, somos levados a reconhecer não apenas que as várias disciplinas são formações históricas, mas que mesmo o conceito de “disciplina” – ou qualquer outro que ajude a compreender melhor a diversidade do conhecimento – é também historicamente construído. Não só está sujeito a transformações históricas o próprio conceito de disciplina – ao lado de outras noções que ajudam a mapear o saber humano – como também a própria necessidade de criar ou operacionalizar termos e conceitos como esses deve ser compreendida historicamente. Nem todos os seres humanos, em cada uma das épocas e sociedades que já surgiram sobre a Terra, sentiram necessidade de pensar disciplinarmente. De igual maneira, mesmo nos momentos históricos onde se afirmou preponderantemente esta necessidade de pensamento disciplinar, sempre existiram resistências ao isolamento científico, particularmente através de indivíduos que manifestaram múltiplos talentos e interesses por variados campos de saber. Neste ponto, começamos a adentrar o tema da interdisciplinaridade,

 

 

O vocabulário da interdisciplinaridade

Antes de prosseguirmos, será importante lembrar alguns outros conceitos que também se sintonizam com as propostas interdisciplinares. Nos dias de hoje, não é rara a utilização da palavra ‘transdisciplinaridade’ para evocar uma cooperação entre várias disciplinas ou profissionais ligados às diversas áreas de saber – em um Projeto Integrado, por exemplo – mas sem que a Pesquisa ou o Projeto tenha uma disciplina-base que cumpra o papel de canalizar ou centralizar os diálogos que se dão a partir dos diversos campos de saber em questão. Pode-se ainda lembrar as noções de multi ou pluridisciplinaridade, as quais investem no estudo do mesmo objeto por diferentes disciplinas, mas sem que haja significativamente uma perspectiva de convergência quanto aos conceitos e métodos. Diante desta última perspectiva, o nível interdisciplinar propriamente dito consistiria mais precisamente em uma integração das disciplinas no nível de conceitos e métodos, aspecto, de todo modo, a ser discutido mais adiante.

Ao lado destes sentidos, também se utiliza com frequência a expressão “interdisciplinaridade” para designar uma prática que pode se estabelecer no interior de certo campo de saber com vistas às possibilidades de incorporar metodologias ou aportes teóricos oriundos de outras disciplinas, estabelecer diálogos bibliográficos com outros campos de saber, enriquecer a disciplina-base com pontos de vista oriundos de outras, e ainda abordar um certo objeto de análise comum a outros campos de saber. A interdisciplinaridade, ademais, liga-se modernamente à ideia de que a disciplina que se abre para o diálogo interdisciplinar produz, neste mesmo movimento, uma transformação efetiva em si ou um enriquecimento relevante em suas próprias perspectivas.

Para melhor clarificar as diferenças que podem ser pensadas entre estas três palavras – interdisciplinaridade, transdisciplinaridade, multidisciplinaridade (ou a sua coirmã, a pluridisciplinaridade) – devemos atentar para os prefixos que, em cada caso, entram na sua composição. Para começar, podemos aproximar, sem maiores problemas e sem perdas significativas, as noções de pluridisciplinaridade e multidisciplinaridade. Elas incorporam radicais latinos que se referem a “muito” (multi) ou “vários” (pluri)[vi].

A multidisciplinaridade, conforme este prisma, corresponderia ao reconhecimento de uma diversidade de disciplinas, e ao empenho em oferecer boas condições para a sua convivência ou mesmo cooperação[vii]. Para além disto, autores que têm refletido sobre o que seria mais propriamente o multidisciplinar têm se dividido em apenas considerar que esta expressão se refere à mera convivência entre visões isoladas de um mesmo objeto, ou em propor a ideia de que a experiência multidisciplinar pressupõe, ou pode em certos casos pressupor, uma efetiva convergência de disciplinas que devem incidir conjuntamente sobre o mesmo objeto:

Por outro lado, com a palavra “interdisciplinaridade”, o que se tem é a ideia decisiva de reciprocidade. O espaço interdisciplinar é aquele que se forma a partir das diversas disciplinas ou campos de saber que precisam não apenas se confrontar e dialogar, mas agir um sobre o outro, além de permitir que a outra disciplina haja sobre ela mesma. A interdisciplinaridade, podemos aqui inferir, não se daria “por dentro” de uma disciplina, mas sim entre duas disciplinas ou mais[xiv]. Este sentido mais geral que pode ser atribuído à interdisciplinaridade, entrementes, deixa algo no ar. Afinal, se a interdisciplinaridade é o espaço de confronto e diálogo que se produz entre as diversas disciplinas, como se dá mais especificamente esse diálogo (ou esse confronto)? Trata-se de um monólogo de mão única ou de um diálogo de via dupla? Ou essa relação entre disciplinas se constitui, de modo bem diverso, em uma espécie de entrelaçamento? Quanto às disciplinas que são levadas a estabelecer uma relação recíproca, estas apenas se demarcam umas diante das outras, cada qual vigiando atentamente o seu território, ou interagem de alguma maneira? Transformam-se ou se deformam, de uma maneira ou de outra, neste complexo processo? De onde parte, por fim, a relação interdisciplinar: de uma disciplina para as outras, ou de todas elas em conjunto, a partir de práticas e aportes que confluem para um mesmo ponto? Questões como essas, que não são resolvidas ao nível etimológico, têm dado margem a muitas discussões conceituais.

 

 

As grandes pontes interdisciplinares

 

Neste ponto, chegamos ao principal interesse deste artigo. Vimos nesta parte inicial que a Interdisciplinaridade é constituída por este impulso de transcender os limites de um campo de saber (de uma disciplina) e estabelecer um diálogo entre diferentes campos de saber, com vistas a alcançar a possibilidade de um conhecimento mais rico, ou atingir possibilidades que não são possíveis meramente dentro de cada compartimento disciplinar. Compreendida a importância da atitude interdisciplinar como possibilidade de renovação, podemos avançar, agora, para um novo questionamento: quando, e, sobretudo, como se dá mais propriamente o momento interdisciplinar, ou este peculiar contato interativo que se pode estabelecer entre os dois campos de saber que se colocam em diálogo? Através de que pontes, meios ou elementos de ligação dá-se o diálogo interdisciplinar? Em poucas palavras: como podem se ligar, se interpenetrar ou se entrelaçar dois campos de saber que se posicionam em uma relação interdisciplinar específica?

Partiremos da ideia básica de que, entre as diversas instâncias que constituem necessariamente uma disciplina – entre as quais a Teoria, o Método, certo padrão discursivo, a constituição de determinados objetos de estudo que se tornam possíveis ou preferenciais a cada campo – a própria presença de uma interdisciplinaridade mínima já é, de si mesma, também uma dimensão incontornável para cada campo de saber. De fato, por mais específico que um campo de saber se faça através da singularidade de seus objetos de estudo e dos métodos e aportes teóricos que instrumentaliza, não há de fato como uma disciplina existir sem estabelecer diálogos e oposições com outras. Já desde o momento em que surge ou se faz visível, qualquer campo de saber não pode senão se situar em uma rede de disciplinas com as quais irá se confrontar, contrastar e interagir. Ao lado disso, é preciso ainda considerar que um novo campo de saber, ao ser inserido em uma determinada rede de saberes, já a modifica necessariamente. O potencial de interferência no conjunto maior de saberes, é claro, pode ser maior ou menor conforme o campo específico que se formou ou que foi inserido na rede, e certamente aqueles campos de saber que estão mais próximos se verão, mais do que outros, interferidos por uma disciplina que com eles apresenta uma maior ressonância (objetos em comum, filiações, práticas e perspectivas similares, ou outras afinidades). Parodiando a física relativística, podemos pensar na metáfora astronômica do espaço que é sempre distorcido ou interferido pela presença ou formação de um novo astro.

Ao mesmo tempo em que cada disciplina que se faz presente afeta em maior ou menor medida a rede geral de saberes, e principalmente os campos disciplinares mais próximos, é preciso ter em vista que toda disciplina científica envolve certas instâncias que são comuns a todos os campos de saber: a Teoria, a Metodologia, as especificidades de um discurso, uma rede de praticantes do campo de saber em questão, as singularidades que o definem, certo campo de interesses que podem se confrontar ou se interpenetrar com o de outras disciplinas, e assim por diante. Os métodos e teorias podem variar, os padrões discursivos entre um campo e outro podem se distinguir radicalmente, os tipos e perfis de profissionais que habitam cada campo de saber variam bastante, mas o fato é que todas as disciplinas, para existirem, precisam desenvolver suas teorias, métodos, discursos e redes de praticantes. Ao mesmo tempo, uma disciplina qualquer, à medida que se torna mais complexa, cedo começa a conformar espaços internos ao seu próprio campo de práticas e de estudos. Surgem então as diversas sub-especialidades ou âmbitos internos, ou o que podemos chamar de “campos intradisciplinares”. Na Medicina surgem modalidades como a Pediatria, Cardiologia, Dermatologia; na Física surgem espaços intradisciplinares como a Ótica, a Mecânica, e Termodinâmica. Os campos de saber se diversificam também por dentro, e é a estes espaços internos que estaremos denominando “campos intradisciplinares”. Quando um campo de saber dialoga com outro, temos a interdisciplinaridade; quando um campo de saber se diversifica por dentro temos a intradisciplinaridade.

A interdisciplinaridade entre um campo de saber e os demais que o cercam, e que com ele se interpenetram ou interagem, pode se dar através de cada uma dessas várias instâncias que necessariamente constituem cada campo de saber (teoria, método, discurso, etc). Vamos chamar aos caminhos conformados por estas instâncias, por estas porosidades ou liames a partir das quais os diálogos entre saberes podem surgir, de “pontes interdisciplinares”. Uma disciplina pode dialogar com outra através de seus aportes teóricos e de certos conceitos em comum; pode incorporar, integrar ou partilhar procedimentos metodológicos que já estão bem desenvolvidos em uma disciplina irmã ou mesmo em uma vizinha distante; pode assimilar padrões e fórmulas expressivas que também constituem o discurso da outra. Diversos campos de saber, além disso, encontram consistentes caminhos interdisciplinares através das suas temáticas de estudo – ou seja, através de certas coincidências entre seus campos de interesses.

As redes de profissionais que se referem a cada campo de saber, por outro lado, podem se interpenetrar de muitas maneiras, e cooperações diversas podem ser estabelecidas. Os pesquisadores de um campo e outro podem trabalhar juntos, inspirar-se mutuamente, e há ainda os casos de dupla formação – aqueles que se referem a estudiosos que se formaram ou que se estabeleceram por autodidatismo em mais de um campo de saber e que, portanto, não podem ser enquadrados única e simplesmente no interior de um só campo disciplinar. Cada um destes âmbitos – Teoria, Metodologia, Discurso, campo de interesses temáticos, bem como a comunidade de estudiosos, assim como as subdivisões intradisciplinares – pode se apresentar aos pesquisadores ligados a certo campo de saber como importantes espaços ou meios para as oportunidades interdisciplinares. Conforme veremos neste artigo, seria possível discutir, para cada uma destas pontes interdisciplinares, e para cada tipo de diálogo mais específico entre dois diferentes saberes, os seus diversos desdobramentos e implicações. Vamos começar abordando uma destas pontes interdisciplinares. O físico romeno Basarab Nicolescu (n.1942) – importante militante da moderna religação dos saberes e redator de um emblemático “Manifesto da Transdisciplinaridade” (1996)[xvii] – enfatiza em suas considerações sobre o assunto principalmente a ponte interdisciplinar do Método[xviii]. Segundo suas proposições em outro texto sobre o tema (2000), o que pode conferir uma tônica interdisciplinar a qualquer trabalho é, sobretudo, a transferência de métodos de uma disciplina para outra, sendo que isto pode ocorrer em três âmbitos distintos. Vejamos esta reflexão em maior detalhe.

 

 

As pontes interdisciplinares da Teoria e do Método

 

Um dos mais conhecidos e percorridos caminhos interdisciplinares entre dois saberes é o das transferências, incorporações e intercâmbios de métodos. Talvez a ponte interdisciplinar do Método, como ligação entre dois campos disciplinares, só rivalize com a ponte interdisciplinar da Teoria. Consideremos que, em primeiro lugar, métodos e técnicas podem ser transferidos no nível da aplicação (1). Um relevante exemplo recente foi o da transferência de metodologias e tecnologias da Física Nuclear para a área da Medicina, o que pôde proporcionar, por exemplo, novos tratamentos e procedimentos com vistas à cura ou ao combate ao câncer[xix]. Para acrescentar um exemplo específico do campo de saber História, podemos lembrar os métodos seriais e quantitativos que, desde fins do século XIX, já vinham sendo empregados pelos economistas com vistas aos objetos tradicionais daquela disciplina. Com a sua assimilação ativa pela historiografia, estas metodologias passaram a ser incorporadas ao programa de expansão dos interesses temáticos historiográficos para além da tradicional História Política, típica do século XIX.

Com a chamada história serial – esta nova abordagem historiográfica que surge a partir do deslocamento de métodos da Economia Histórica – desenvolve-se plenamente uma nova concepção de fonte histórica, fundada no conceito de “série” – um conjunto homogêneo de documentos ou de dados que deve ser trabalhado sistematicamente em linha, a partir da análise de conjunto, das variações e continuidades no interior da série.

O advento da abordagem serial, ultrapassando o tratamento qualitativo do documento isolado, foi saudado por muitos como uma renovação, ou mesmo como uma revolução na historiografia, e não cessou de multiplicar suas possibilidades de aplicação nas décadas seguintes. Não só a nascente história econômica pôde se beneficiar das metodologias seriais, mas também a história demográfica, a história local e, posteriormente, a história das mentalidades. Cada um destes subcampos ou modalidades possíveis no interior deste vasto campo de saber que é a História – um campo que, além destas modalidades citadas, apresenta muitas outras – beneficiou-se dos aportes metodológicos que já eram utilizados pelos economistas e estatísticos. Conforme se vê, inspirados nas metodologias seriais e quantitativas, os historiadores encontraram para elas campos de aplicação os mais diversos. Temos aqui o que podemos chamar de uma interdisciplinaridade criativa, que não apenas assimila práticas e métodos já empregados em outros campos, como também encontra e inventa novas possibilidades de aplicação para eles.

Avancemos na reflexão sobre a transferência interdisciplinar de metodologias. Conforme ressalta Basarab Nicolesco em seu “manifesto da transdisciplinaridade” (1996), é possível transferir métodos também no nível mais propriamente epistemológico (2). Mais do que a mera incorporação de técnicas e de um instrumental, este nível de transferências metodológicas requer revisões de perspectivas, muitas vezes em interação com a Teoria. Para prosseguir com mais alguns exemplos relacionados à disciplina História, pode-se lembrar a bem sucedida incorporação da perspectiva estruturalista, das abordagens voltadas para a análise de discurso, das análises semióticas, ou de inúmeras outras perspectivas teórico-metodológicas que já eram desde muito familiares à Linguística e à Crítica Literária. Transferidas pelos historiadores para o exame das fontes históricas, estas abordagens proporcionaram-lhes uma diversificação muito rica de metodologias de análise textual.

Neste ponto, podemos lembrar uma segunda ponte interdisciplinar que se abre ao diálogo entre dois saberes: a Teoria. Sabe-se que os diversos saberes compartilham conceitos. Considerando que os conceitos são instrumentos teóricos, pode-se dizer que o compartilhamento de conceitos em comum, entre dois ou mais campos de saber, ajudam a pavimentar esta ponte interdisciplinar importante que é a Teoria. Deixaremos para discutir os conceitos, contudo, em um tópico posterior, relacionado ao Discurso – pois ao mesmo tempo em que são instrumentos teóricos, os conceitos também são unidades de comunicação, e portanto pertinentes ao campo do Discurso – este também um universo de possibilidades que funciona como ponte interdisciplinar.

Por outro lado, a Teoria oferece muitas outras possibilidades como ponte interdisciplinar. As grandes áreas de saber costumam compartilhar perspectivas teóricas em comum. Apenas para dar o exemplo das ciências humanas, podemos lembrar que perspectivas teóricas como a do Materialismo Histórico, do Positivismo ou do Historicismo recobre os saberes ligados às ciências humanas, da História à Sociologia, passando pela Geografia, Linguística, Antropologia, Psicologia e Economia. Não é difícil deduzir que há um grande potencial de formação de pontes interdisciplinares a partir destes e de inúmeros outros espaços teóricos que poderiam ser dados como exemplos – tanto aqueles que recobrem uma grande área de saberes, como os que se estabelecem entre duas disciplinas. Há ainda as perspectivas teóricas que se originaram em um determinado campo, mas foram utilizadas com sucesso em outros. A perspectiva da polifonia – originária da Música – estendeu-se por exemplo para a Linguística, possibilitando enxergar certos tipos de discursos como entremeados discursivos constituídos por muitas vozes, como ocorre com as composições musicais polifônicas. O mesmo modo de ver, entrementes, em outro momento passou a beneficiar a História – e hoje falamos, por exemplo, em fontes polifônicas, para nos referirmos a tipos de documentação nos quais várias vozes parecem competir em um mesmo espaço discursivo, tal como ocorre nos jornais e nos processos criminais. A Teoria, certamente, é uma ponte interdisciplinar crucial que pode se estabelecer entre dois diferentes saberes, e mais adiante veremos que esse aspecto também ocorre através dos conceitos.

 

Formação de novos espaços intradisciplinares

 

A terceira possibilidade de uso da ponte metodológica sinaliza para a geração de novas disciplinas, ou de novos campos intradisciplinares. A Astrofísica, por exemplo – já de si mesmo uma interdisciplina – beneficiou-se da transferência de metodologias pertinentes à física de partículas. Isso proporcionou o franco desenvolvimento de uma surpreendente cosmologia quântica. Podemos lembrar, mais uma vez, um caso referente à História. A transferência, para este campo, de métodos e de procedimentos diversos oriundos da Geografia, bem como também de suas contribuições teóricas, terminou por gerar a Geo-História. Um campo intradisciplinar como este, aliás, já é de si mesmo uma grande e relevante ponte interdisciplinar: um espaço comum diante do qual e dentro do qual podem circular os estudiosos ligados a um e outro destes campos originais de saber (a História e a Geografia). A Geo-História nos oferece um exemplo autoexplicativo que aflorou a partir da quinta década do século XX, particularmente sob a contribuição original do historiador francês Fernand Braudel (1902-1985) com sua célebre obra sobre O Mediterrâneo nos Tempos de Philippe II (1949). Mais tarde, viriam outros campos intradisciplinares similares, como a História Ambiental. Esta pode ser vista como uma área de saber que propõe estender uma ponte entre a História Natural e a História Social. Deste modo, estabelece-se aqui um diálogo entre a História, a Geografia, e as diversas ciências da vida, como a Biologia (incluindo campos intradisciplinares como a Zoologia, a Botânica, a Ecologia), sem esquecer os campos de saber relacionados ao estudo do meio, como a Geologia, a Oceanografia e a Meteorologia. Todo esse caudal interdisciplinar conflui para possibilitar a formação e reatualização de um campo novo que vem sendo chamado de História Ambiental[xx].

Tudo o que se disse atrás acerca da ponte interdisciplinar do Método – mais particularmente seus deslocamentos possíveis nos níveis da aplicação, epistemologia e geração de novas disciplinas e espaços intradisciplinares – poderia ser dito igualmente para a ponte interdisciplinar da Teoria. As ciências humanas, obviamente, sempre compartilharam muitas perspectivas teóricas entre si, e não é nada raro que um viés teórico desenvolvido originalmente em uma delas se expanda para as outras. Ademais, como veremos mais adiante, a ponte interdisciplinar da Teoria também oferece a possibilidade de transferências conceituais, isto é, as diversas oportunidades de incorporação e adaptação de conceitos de uma disciplina em outra.

 

 

Discurso e Conceito como ponte interdisciplinar

 

Com relação à ponte interdisciplinar do Discurso, os diversos campos de saber também travam contínuos diálogos: uns assimilam vocabulário originário de outros; às vezes inventam-se termos e conceitos no entrecruzamento de campos distintos. Da mesma forma, os modos de expressão provenientes ou comuns a um campo podem influenciar significativamente o outro.

Quantos conceitos originaram-se em um campo e foram recebidos no repertório vocabular de outro? Um exemplo típico está no conceito de “crise”: originário da medicina, na qual designava e ainda designa diversos processos corporais e vitais como a falência, sobrecarga ou mau-funcionamento de órgãos ou de sistemas vários. O conceito migrou, nas primeiras décadas do século XX, para campos como a economia, ciência política e história, e hoje faz parte do vocabulário comum que se vê nos noticiários todos os dias. Também conceitos como o de “segregação”, oriundo da botânica, foram recebidos em certo momento pelas ciências humanas, de modo a designar fenômenos como a segregação social.

Além disto, há também conceitos e termos que já nascem mais propriamente como “conceitos transdisciplinares”[xxi]. Alguns deles têm origens em saberes ou perspectivas que já são, por si mesmos, tendentes à transdisciplinaridade, no sentido de que são pouco localizáveis no interior das fronteiras de um único saber mais convencional. Emílio Roger Ciurana, que atenta para este aspecto, dá como exemplos destes saberes transdisciplinares, entre outros, a “teoria dos sistemas” e a “teoria da informação”. Da mesma forma, entre os conceitos que já nasceram tendentes à transdisciplinaridade, indica certos conceitos típicos da linguística saussureana, como “código”, “mensagem”, e assim por diante[xxii].

A reapropriação conceitual entre disciplinas é bastante comum. Para evocar o exemplo da disciplina História, é oportuno considerar que este é um campo de saber que não cessa de renovar e enriquecer o seu próprio vocabulário a partir do vocabulário conceitual trazido de outras disciplinas. Ao lado disso, considerando que entre os objetivos da História inclui-se a produção de textos expressivos – inclusive dotados de uma dimensão estética e literária (o texto final do historiador que pretende apresentar os resultados finais da pesquisa em forma de uma narrativa crítica e analítica) – é evidente que campos como o da Literatura podem e devem contribuir diretamente para uma renovação do discurso da História. Agora já não falamos apenas da incorporação de conceitos, mas da assimilação de novos estilos e recursos expressivos. O historiador, enfim, produz um gênero literário específico que é o texto historiográfico. Por isso, a interdisciplinaridade com os recursos expressivos é uma necessidade para o desenvolvimento da História em novos níveis de expressão. O mesmo se pode dizer de boa parte dos saberes ligados às ciências humanas e sociais.

 

 

Temáticas compartilhadas

 

Chegamos às pontes interdisciplinares que se estabelecem a partir das temáticas de estudo e de investigação. Não é nenhuma novidade que um determinado campo de saber pode se ligar a inúmeras outras disciplinas através de interesses temáticos em comum. O caso da História, mais uma vez, é exemplar. Tudo, afinal, tem uma história. Além de partilhar interesses de estudo com outras ciências humanas – uma vez que os historiadores estudam temas que também são habitualmente caros aos sociólogos, antropólogos, geógrafos, psicólogos e linguistas – não há limite para os aspectos que podem ser examinados de uma certa perspectiva historiográfica. Os próprios campos de saber, conforme já vimos, têm também, cada um deles, a sua própria história, e podem por isso ser examinados pelos historiadores que se dedicam à História das Ciências. Fenômenos físicos, naturais, biológicos – e as relações que os seres humanos estabelecem com eles – podem se redesenhar como objetos para estudos historiográficos específicos. Há por exemplo uma História do Clima, uma História da Alimentação, uma História da Doença[xxiii].

Muitos outros exemplos poderiam ser dados para exempificar as pontes interdisciplinares que se formam a partir de objetos e temas compartilhados. A quem pertence o átomo? Aos físicos? Aos químicos? Entre que saberes transita esta realidade mínima que já não é mínima, e que um dia pertenceu à especulação filosófica? E as células, como se compartilham entre os biólogos, botânicos, médicos de diversas especialidades? A quem pertence o interesse pelos chamados loucos? Psicólogos, psiquiatras, sociólogos, antropólogos, historiadores? Poetas? Não serão as cidades – como no mundo já os são – espaços intensos de trocas e compartilhamentos, já que por elas se interessam urbanistas, sociólogos, antropólogos, historiadores, e ainda os psicólogos que estudam os modelos de comportamentos dos seres humanos que nelas habitam?

Todos esses campos temáticos – o átomo, a célula, os loucos e as cidades – bem como inúmeros outros, podem nos oferecer pontes interdisciplinares que obrigam os saberes a, mais uma vez, se encontrarem muito além dos horizontes que os definem. Seria possível a História e a Geografia estudarem seriamente quaisquer dos seus inúmeros objetos de interesse sem se esbarrarem uma na outra, ou sem se enlaçarem amistosamente?

 

A rede humana e autoral entre as disciplinas

 

A rede humana e a configuração multiautoral de um campo, ou de vários campos em interdisciplinaridades cruzadas, podem se oferecer como pontes interdisciplinares de muitos modos. Quero lembrar aqui, principalmente, três destas pontes interdisciplinares que se estendem através da rede humana ou autoral: [1] o pesquisador dotado de formação ou informação interdisciplinar; [2] as equipes interdisciplinares de pesquisadores; [3] o recuo aos autores clássicos que ainda não atuavam, na época de enunciação de suas obras, no interior de uma conformação disciplinar demasiado rígida.

Antes de prosseguir, registro desde já um aparte: quando falo de pesquisadores, poderia também estar falando de professores, trabalhadores, cientistas, artistas, bem como de representantes das mais diversas práticas. Falar das práticas e diálogos interdisciplines que são estabelecidos e postos em movimento por pesquisadores – isto é. pelos pensadores que atuam na produção do saber dito científico – é só uma questão apropriada para exemplificar e facilitar um discurso. De fato, tudo o que for dito aqui, rigorosamente falando, não precisa se restringir apenas à interdisciplinaridade científica: pode se estender às interdisciplinaridades pedagógica, escolar ou prática, ou inclusive, ainda, às interdisciplinaridades artísticas, seja entre grandes campos de expressão artística – como as Artes Visuais, a Música e a Literatura – ou no interior de um mesmo grupo (por exemplo, entre a pintura e a escultura, que compartilham um espaço comum no interior das artes visuais). Vou me concentrar, entretanto, em exemplos mais específicos relacionados à interdisciplinaridade científica.

Quando pensamos em discutir o papel, como pontes interdisciplinares importantes, dos próprios seres humanos que produzem conhecimento – eles mesmos, como indivíduos concretos e contextualizados – vêm-nos logo à mente aqueles indivíduos de diversificada formação ou de elevada informação interdisciplinar. Lá no extremo mais raro do espectro, temos os polímatas, que são os indivíduos que se sobressaem com extraordinário destaque em diversas áreas. Podem ter obtido capacitação formal em várias áreas, ou ter conquistado esta multicapacitação de modo autodidata ou mesmo através da experiência. Em alguns casos, para o qual podem ser citados alguns exemplos históricos muito conhecidos, possuem um surpreendente feixe de habilidades que neles parecem tão naturais que se torna difícil explicá-las.

É comum lembrarmos os nomes de Leonardo da Vinci (1452-1519), Aristóteles (384-322 a.C) ou Leibniz (1646-1716). Mas impressionam mais ainda os polímatas que já vivem ou viveram nos tempos de fragmentação disciplinar do período contemporâneo, sendo oportuno relevar que, na Itália renascentista de Leonardo da Vinci, ou na Grécia clássica de Aristóteles, vigorava um modelo de Paideia (de formação humanista universal) que estimulava o indivíduo educado a se familiarizar efetivamente com diversos saberes. Já mostramos que, a partir do século XIX, passa a vigorar um modelo de parcelarização dos saberes que autoriza e mesmo motiva o orgulho monodisciplinar – o orgulho de cada um ficar no seu pequeno canteiro de conhecimento, onde cultivará sempre as mesmas rosas através das águas da especialidade.

Na verdade, não precisamos do polímata para termos o ‘indivíduo interdisciplinar’ (não nos referimos aqui, neste momento, ao indivíduo ‘animado da atitude interdisciplinar’, mas ao indivíduo que tem mesmo mais de uma formação). Basta ter uma dupla formação, o que não é tão incomum – mesmo nesse mundo tendente à fragmentação dos saberes – que já se forma um passim de interdisciplinaridade através de um mesmo indivíduo. Por outro lado, quero dizer que, para pensarmos na rede humana como ponte interdisciplinar, não precisamos nem mesmo os indivíduos de dupla ou múltipla formação. Existe o recurso das chamadas equipes interdisciplinares. A cooperação entre profissionais ligados a diferentes saberes é suficiente para que se faça da rede humana uma ponte interdisciplinar. Por fim, quero mencionar uma terceira possibilidade de estimula interdisciplinar através da rede humana – neste caso da rede autoral – lembrando a proposta de Juan Jose Castillo em seu instigante artigo sobre “O Paradigma Perdido da Interdisciplinaridade” (1987):

 

“Minha proposta, buscando o paradigma perdido da interdisciplinaridade, é retornar a esses clássicos[xxiv], que são nosso tronco comum, e também nossas raízes, sem as limitações dos encastelamentos atuais, tanto profissionais, como disciplinares ou científicos”[xxv]

De fato, quando voltamos a um clássico como Karl Marx (talvez não seja o melhor exemplo, se considerarmos que Marx era, de certo modo, um polímata), temos alguma dificuldade em escolher para ele uma única localização no quadro geral dos saberes. Seria melhor defini-lo como filósofo, economista, sociólogo, historiador, cientista político, ou talvez militante? O paradigma do Materialismo Histórico, que se formou em meados do século XIX e passou a ser compartilhado pelas diversas ciências humanas – rendendo frutos principalmente no século XX – foi construído interdisciplinarmente. Não é preciso lembrar que Marx, tendo uma formação filosófica inicial, precisou estudar profundamente toda a produção das ciências econômicas já disponível em sua época, para enfrentar o desafio de escrever O Capital (1867).

A rigor, se considerarmos alguns dos economistas ingleses nos quais Marx se baseou para a configuração crítica de seu próprio pensamento econômico – tais como Adam Smith e Ricardo – nem podemos dizer que eles já eram diretamente rotuláveis como economistas, pois são tanto pioneiros como anteriores, propriamente dito, à formação deste campo disciplinar que é a Economia. As ciências econômicas os assimilam, como não poderia deixar de ser, aos seus quadros disciplinares. Mas Adam Smith (1723-1790) tanto escreveu obras que fundam a Economia Política, como produziu trabalhos em outros campos, como a Filosofia Moral[xxvi]. Não fez isso porque era um polímata, ou nem mesmo porque tinha uma dupla formação[xxvii], mas simplesmente porque sua atuação autoral precede de fato à formação de um campo disciplinar, rigorosamente falando, como o da Economia Política.

Algo similar também ocorre, por exemplo, com Philippe Pinel (1745-1826), médico francês que viveu o período da Revolução Francesa. Pinel é muito habitualmente evocado como um dos fundadores da Psiquiatria, e por isso inserido, pela história da ciência, no interior deste campo. Na verdade, era um médico propondo novas categorias para a classificação de distúrbios mentais[xxviii]. Mais tarde – por conta de certos episódios da Revolução Francesa nos quais Pinel ordena a libertação de alienados mentais que estavam presos a correntes de ferro no Manicômio de Bicêtre, situado nos arredores de Paris – passaria também a ser evocado como um antecipador distante do emblemático movimento anti-manicomial que ocorreu nos anos 1970[xxix]. Deste modo, a referência dissonante ao mesmo sujeito de conhecimento terminou por ser convocada, em momentos distintos, para a historiografia de origem de duas posições epistemológicas antagônicas: a psiquiatria e a antipsiquiatria.

Quando retornamos a alguns dos clássicos, podemos voltar a um ponto onde a disciplina ainda não se tinha formado – ou, ao menos, a um ponto no qual a disciplina ainda não era tão rígida nos seus limites, na definição dos seus objetos, na hiper-especialização dos seus praticantes. Há clássicos, como o filósofo grego Aristóteles (384-322 a.c), cujas obras multidiversificadas praticamente constituem entroncamentos de muitos saberes. É possível encontrar, também nos clássicos (ou nos exploradores pioneiros, podemos chamá-los assim), posições que posteriormente deram origem mesmo a epistemologias antagônicas.

O autor clássico também pode ter se constituído, ele mesmo, em um espaço de transição entre duas disciplinas, como veremos mais adiante ter sido o caso de Max Weber (1864-1920), que hoje é classificado disciplinarmente como sociólogo, mas que só assumiu essa identidade disciplinar em um momento mais tardio de sua trajetória autoral. Muitas vezes, o retorno ao clássico é saudável não apenas por causa de sua contribuição específica – a qual, de fato, também é importante – mas também porque a sua obra nos habitua à interdisciplinaridade, uma vez que permite que nos situemos em um momento anterior a certos encastelamentos disciplinares e intradisciplinares que ocorreram na história de certos campos de saber. Esta é mais uma das razões que fazem dos clássicos uma fonte incontornável de aprendizado: não apenas são fundamentais para a disciplina que os elege como referência importante dentro do campo, como também ensinam a transitar entre as disciplinas. Os clássicos, neste sentido, apresentam-se como significativas pontes interdisciplinares. Eles nos situam em um patamar do qual podemos olhar para as coisas de um ponto de vista fora da caixa.

TEORIA E METODOLOGIA: PARA ENTENDER O QUE SÃO ESTAS DUAS DIMENSÕES DA PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO

Teoria e Metodologia, por José D'assunção Barros

Uma teoria, conforme veremos neste artigo, é uma visão de mundo. Enquanto isso, uma metodologia pode ser compreendida como 'um modo de fazer as coisas'. Neste texto, vamos explorar os esclarecimentos sobre o que é o teórico, o que é o metodológico, e como estas duas instâncias interagem uma sobre a outra. Vamos compreender ainda que qualquer tipo de saber científico ou sistematizado precisa articular estas duas instâncias, de modo que não existe disciplina que não tenha uma dimensão teórica e uma dimensão metodológica, e que deixe de articular estas dimensões de muitas maneiras.

A noção fundamental de que as teorias são visões de mundo pode ficar clara de duas maneiras: pelo contraste mias rigoroso entre Teoria e Método, e por um esclarecimento adicional de que, embora as teorias sejam necessariamente visões de mundo, existem outros tipos de visões de mundo que nada têm a ver com Teoria. Assim, o modo intuitivo de agir também produz uma maneira de enxergar e agir sobre a realidade - configurando um âmbito bem distinto da teoria. De igual maneira, existem também outras visões de mundo bem distintas da teoria - típica do pensamento científico - como é o caso de fé religiosa ou da da magia, apenas para dar dois exemplos. Neste artigo, entretanto, vamos nos concentrar no contraste entre Teoria e Metodologia, e nas formas de interação entre estes dois campos de modo a produzir conhecimento.

A “teoria” remete, como já se disse, a uma maneira específica de ver o mundo ou de compreender o campo de fenômenos que estão sendo examinados. E é importante desde já ressaltar que cada campo de saber possui muitas alternativas teóricas (muitas maneiras de ver um mesmo objeto de estudos, e inclusive muitas maneiras de compreender a própria disciplina científica que estivermos considerando. Assim, entre inúmeras correntes teóricas à sua disposição, um psicólogo poderia se associar à corrente teórica da “psicanálise”, trazendo o ‘discurso’ para o centro de seu sistema, ou se ligar à corrente reichiana, para a qual o ‘corpo’ desempenhará um papel primordial, ou então se associar a uma abordagem teórica ‘sistêmica’, que procurará enxergar o mundo através das relações dos indivíduos entre si e em relação ao todo). De igual maneira, um historiador pode se apoiar em uma perspectiva teórica positivista, um outro em uma perspectiva historicista, e um terceiro enxergar a realidade histórica e o seu campo de saber conforme os parâmetros teóricos do Materialismo Histórico, apenas para citar três entre as muitas possibilidades de paradigmas teóricos que se abrem aos historiadores. Falar nestas maneiras diversificadas de ver que se abrem no interior de certo campo disciplinar - seja ele a Psicologia, a História, a Física ou a Biologia - é falar em “correntes teóricas”[1].

Entre outros aspectos, a Teoria remete aos conceitos e categorias que serão empregados para encaminhar uma determinada leitura da realidade, à rede de elaborações mentais já fixadas por outros autores (e com as quais o pesquisador irá dialogar para elaborar o seu próprio quadro teórico). Ao lado disto, a Teoria também implica em uma visão sobre o próprio campo de conhecimento que se está produzindo. É por exemplo uma questão teórica importante a subdivisão de certo campo de conhecimento em suas modalidades internas (a Física que se desdobra em ‘termodinâmica’, ‘ótica’ ou ‘mecânica’, por exemplo, ou a Historiografia que se desdobra em ‘história cultural’, ‘história política’, ‘história econômica’, e tantas outras modalidades). Enfim, a Teoria tanto remete à maneira como se concebe certo objeto de conhecimento ou uma determinada realidade examinada, a partir de dispositivos específicos que são os conceitos e fundamentos teóricos de diversos tipos, como também se refere ao modo como o pesquisador ou cientista enxerga sua própria disciplina ou seu próprio ofício.

Já a “Metodologia” remete sempre a uma determinada maneira de trabalhar algo, de eleger ou constituir materiais, de extrair algo específico destes materiais, de se movimentar sistematicamente em torno do tema e dos materiais concretamente definidos pelo pesquisador. A metodologia vincula-se a ações concretas, dirigidas à resolução de um problema; mais do que ao pensamento, remete à ação e a prática[2]. Um tipo de entrevista realizado por um psicólogo que tenta apreender as potencialidades de um futuro profissional da empresa, ou a “análise de discurso” de que um historiador lança mão para compreender as suas fontes históricas, são relacionados ao âmbito dos procedimentos técnicos e das metodologias. Quando o historiador situa uma série de documentos em série, e procura incidir sobre elas um determinado questionário ou uma tabulação de tópicos e critérios, estará certamente empregando uma “metodologia. Assim, enquanto a ‘teoria’ refere-se a um “modo de pensar” (ou de ver), a ‘metodologia’ refere-se a claramente um “modo de fazer”. Estes dois verbos – “Ver” e “Fazer” – constituem os gestos fundamentais que definem, respectivamente, Teoria e Método.

Poderemos, a partir destas colocações iniciais, sintetizar aquilo que se refere ao Teórico, e o que já se refere ao Metodológico, seja de modo geral ou mais especificamente no âmbito das ciências históricas. O ‘Quadro 2’, situado ao final deste artigo, procura dar um exemplo da distinção entre Teoria e Metodologia tomando como exemplo uma das ciências humanas, a História. O quadro relaciona, à esquerda, tudo aquilo o que se refere ao âmbito teórico e à Teoria da História. Já no lado direito do esquema, encontraremos aquilo que se refere mais diretamente à Metodologia da História. Conforme já postulamos, são elementos pertinentes à Teoria todos aqueles aspectos, fatores e artifícios que se relacionam às “maneiras de ver” e às concepções historiográficas. Os ‘conceitos’, por exemplo, são importantes instrumentos da Teoria. Quando formulamos um conceito como o de “Classe Social”, estamos nos proporcionando certa maneira de enxergar a sociedade, pois imediatamente passamos a concebê-la como dividida de uma forma específica, do mesmo modo que começamos a enxergar a partir desta divisão hierarquizações e antagonismos específicos entre os vários grupos sociais resultantes desta concepção da sociedade. Para dar outro exemplo, conforme definamos de certa maneira o conceito de “Revolução”, e não de outra, estaremos abrindo espaço para algumas formas de enxergar e analisar determinados processos sócio-políticos, e nos fechando para outras[3].

Também pertencem ao âmbito da Teoria da História os grandes paradigmas historiográficos e os sistemas teóricos mais amplos que se destinam a encaminhar a compreensão e análise historiográfica[4]. Os paradigmas Positivista, Historicista e o Materialismo Histórico, entre outros, pertencem ao quadro de grandes correntes teóricas disponíveis aos historiadores (embora frequentemente estas correntes também envolvam aspectos metodológicos, é preciso desde já ressalvar).

Teorias mais específicas sobre processos históricos – que nada mais são que “maneiras de ver” estes processos históricos singularizados – também pertencem ao âmbito da Teoria da História. Existem, por exemplo, dezenas de teorias sobre o Nazismo, ou sobre os fatores que levaram à eclosão e crescimento do Nazismo na Alemanha do período posterior à primeira Guerra Mundial. Há igualmente uma quantidade indefinida de teorias sobre a Revolução Francesa, que procuram oferecer uma determinada leitura daqueles acontecimentos e processos que se deram na França em fins do século XVIII.

A Historiografia também estabelece ‘diálogos interdisciplinares’ importantes – muitos dos quais de cunho teórico, e outros relacionados ao âmbito metodológico – com outros campos do conhecimento como a Antropologia, a Geografia, a Economia, a Sociologia, a Psicologia, e tantos outros. Por isto, no esquema proposto, os ‘diálogos interdisciplinares’ atravessam tanto a Teoria como a Metodologia da História. Para além disto, a subdivisão da História em modalidades internas – como a História Cultural, a História Política, a Micro-História, e tantas outras – é uma questão teórica importante. Quando atinge certo nível de complexidade, muito habitualmente um campo de saber começa a produzir “espaços intra-disciplinares”, e a permitir, obviamente, conexões as mais diversas entre estes espaços intra-disciplinares de acordo com cada objeto de estudo. O olhar que um campo de estudos estabelece sobre si, identificando e constituindo seus espaços internos, é também uma questão teórica, um modo de enxergar a si mesmo, que no caso da História corresponde a mais uma das tarefas da Teoria da História.

Vejamos agora o outro hemisfério da figura proposta. Conforme já pontuamos, faz parte da Metodologia tudo aquilo que é pertinente ao “fazer da história” – às situações concretas e práticas com as quais deve o historiador se defrontar em seu processo de Pesquisa, de análise de fontes, ou mesmo de exposição de resultados. A partir disto, é possível vislumbrar o que pode ou deve ser relacionado ao âmbito metodológico, para o caso da História. Elementos de importância máxima, que perpassam toda a Metodologia da História e que correspondem de certo modo o seu centro, são precisamente as Fontes Históricas. A Historiografia desenvolve inúmeros procedimentos e metodologias para constituir as fontes históricas, para analisá-las, para serializá-las, para utilizá-las como fontes de indícios e informações historiográficas, ou para abordá-las como discursos que devem ser decifrados, analisados, incorporados criticamente pelo historiador. Inúmeros âmbitos relacionados aos “Métodos e Técnicas” poderiam ser aqui indicados, e a História Oral, a Arqueologia, a Análise de Discurso, ou o tratamento serial e estatístico constituem apenas alguns exemplos.

É imprescindível à Metodologia da História, ainda, o próprio ‘planejamento da pesquisa’, e neste sentido o ‘Projeto de Pesquisa’ constitui um recurso metodológico importante. Claro que, no interior do seu texto, um bom Projeto de Pesquisa também falará de Teoria, uma vez que faz parte de um bom planejamento indicar as referências conceituais, discutir o Quadro Teórico que orientará a análise, formular hipóteses, e dialogar com a historiografia e teoria já existente. Isto posto, tomado em si mesmo, o Projeto de Pesquisa pode ser perfeitamente tratado como um recurso metodológico.

É verdade, ainda, que uma decisão “teórica” pode encaminhar também uma escolha “metodológica”. Reciprocamente, a metodologia – ou uma certa maneira de fazer as coisas – também pode retroagir sobre a concepção teórica do pesquisador, modificando sua visão de mundo e levando-o a redefinir os seus aportes teóricos. Frequentemente, há certas implicações metodológicas a partir de certos pressupostos teóricos, e, inversamente, quando optamos por uma certa maneira de fazer as coisas, de enfrentar situações concretas apresentadas pela Pesquisa, também estamos optando por um certo posicionamento teórico. Por exemplo, não é raro que o Materialismo Histórico – um dos paradigmas historiográficos contemporâneos – seja referido como um campo teórico-metodológico, uma vez que enxergar a realidade histórica a partir de certos conceitos como a “luta de classes” ou como os “modos de produção” também implica necessariamente uma determinada metodologia direcionada à percepção dos conflitos, das relações entre condições concretas imediatas e desenvolvimentos históricos e sociais. Uma certa maneira de ver as coisas (uma teoria) repercute de alguma maneira numa determinada maneira de fazer as coisas em termos de operações historiográficas (uma metodologia).

A Pesquisa em História, e a sua posterior concretização em Escrita da História (isto é, a apresentação dos resultados da pesquisa em forma de texto) envolvem necessariamente este confronto interativo entre teoria e metodologia. O ponto de partida teórico, naturalmente, corresponde a uma determinada maneira como vemos o processo histórico (porque há muitas). Podemos alicerçar nossa leitura da História na idéia de que esta é movida pela “luta de classes”, tal como foi acima proposto. Mas se quisermos identificar esta “luta de classes” na documentação que constituímos para examinar este ou aquele período histórico específico, teremos de nos valer de procedimentos técnicos e metodológicos especiais. Será talvez uma boa idéia empreender uma “análise de discurso” sobre textos produzidos por indivíduos pertencentes a esta ou àquela “classe social” (“classe social”, aliás, é também uma categoria “teórica”). Esta análise de discurso poderá se empenhar em identificar “contradições”, ou em trazer a nu as “ideologias” que subjazem sob os discursos examinados, e para tal poderá se valer de técnicas semióticas, da identificação de temáticas ou de expressões recorrentes (análises isotópicas), da contraposição intertextual entre discursos produzidos por indivíduos que ocupam posições de classe diferenciadas, e assim por diante.

De igual maneira, se acreditamos que as condições econômicas e materiais determinam em alguma instância a vida social e as superestruturas mentais e jurídicas de uma determinada comunidade humana historicamente localizada (outro postulado[5] teórico do Materialismo Histórico) deveremos selecionar ou constituir metodologias e técnicas capazes de captar os elementos que caracterizariam esta vida material. Dependendo do tipo de fontes históricas utilizadas poderemos, por exemplo, realizar análises quantitativas ou seriais, utilizar técnicas estatísticas para levantar as condições de vida de determinados grupos sociais dentro de uma determinada população, e assim por diante.

É assim que uma determinada Teoria pode se sintonizar com determinadas possibilidades metodológicas; e certamente existem metodologias que favorecem ou que inviabilizam o encaminhamento de certas perspectivas teóricas. Para além disto, a interação entre Teoria e Metodologia também aparece de maneira muito clara na elaboração de “hipóteses”. Via de regra, uma hipótese é gerada a partir de certo ambiente teórico, e frequentemente é formulada a partir de conceitos muito específicos. Posto isto, não há sentido em formular uma hipótese que não possa ser demonstrada – pois, se assim for, não estaremos diante de uma verdadeira hipótese, e sim de uma mera conjectura. É depois que formulamos uma hipótese, e quando partimos para a sua demonstração, que surge a necessidade de uma “metodologia”. Nas ciências históricas, qualquer hipótese apresentada deve buscar respaldo nas fontes primárias, e na análise destas fontes, ou, ao menos, deve ser referida a evidências que tenham chegado ao historiador de alguma maneira. Estes procedimentos – o levantamento de fontes, a constituição de um corpus documental, a verificação comparada de informações e a análise dos discursos trazidos pela documentação – estão ancorados, conformes já vimos, na Metodologia.  Para verificar uma hipótese, ou para rejeitá-la, é preciso de método. Não é por outro motivo senão este que, no ‘Quadro 2’, fizemos com que a palavra “hipótese” apareça atravessada entre os hemisférios da Teoria e da metodologia. Uma hipótese nasce no mundo teórico, a partir de uma determinada maneira de enxergar a realidade, mas em seguida ela se dirige ao âmbito metodológico em busca de comprovação. Torna-se mais um dos inúmeros elos que podem ser estabelecidos entre a Teoria e a Metodologia.

Vemos, portanto, que Teoria e Metodologia são como que duas irmãs siamesas. Uma olha para o alto, buscando enxergar algo de novo no céu estrelado de todas as realidades possíveis e imaginárias. A outra, decididamente prática, aponta para o chão, em busca de soluções concretas para confirmar ou rejeitar as hipóteses aventadas pela irmã. Teoria e Metodologia, separadas uma da outra, não têm muito sentido para a Ciência. A “teoria pura” facilmente poderia se converter em especulação. A “metodologia pura”, a rigor, nem surge como possibilidade, e quando muito se converte em alguma forma de exercício aprendido mecanicamente em alguma fase inicial de treinamento artesanal ou científico. Nas Ciências Humanas, que sempre almejam produzir como resultado uma reflexão fundamentada sobre a realidade social, a Teoria e a Metodologia são gêmeas mais siamesas do que nunca. De todo modo, apesar das mútuas repercussões entre teoria e método, não devemos confundir uma coisa com a outra. Se há uma interpenetração possível entre concepções teóricas e práticas metodológicas disponíveis ao historiador ou a qualquer outro tipo de pensador/pesquisador, deve-se ter sempre em vista que “teoria” e “método” são coisas bem distintas, da mesma maneira que “ver” e “fazer” são atitudes verbais e práticas diferenciadas, embora possam se interpenetrar. 

Ainda como um ponto interessante que pode ser ressaltado para o caso da Teoria, deve-se ainda entender que pode existir uma grande diversidade de teorias possíveis para qualquer objeto de investigação ou para qualquer campo de conhecimento examinado, e que as diversas teorias podem se contrapor, se sucederem ou se sobreporem umas às outras. Uma vez que cada teoria propõe ou se articula a uma determinada “visão de mundo”, ela também corresponde à formulação de determinadas perguntas, e consequentemente abre espaço a um certo horizonte de respostas. Na mesma medida em que as teorias se diversificam, também variam muito as respostas proporcionadas por cada teoria em relação a uma certa realidade ou objeto examinado. Thomas Kuhn, autor do célebre livro A Estrutura das Revoluções Científicas (1962), já considerava que uma teoria frequentemente se afirma em detrimento de outra precisamente porque responde a algumas questões que a outra teoria não respondia. Nesta perspectiva, as mudanças de teoria (ou as opções por uma ou outra teoria) ocorrem porque uma teoria passa a satisfazer mais do que outra – isto é, porque as questões a que a nova teoria adotada dá resposta começam a ser consideradas mais importantes ou relevantes pelo sujeito que produz o conhecimento. Dito de outra maneira, cada teoria, ao corresponder ou ao equivaler a uma determinada visão de mundo, permite que sejam formuladas certas perguntas, e, frequentemente, uma nova teoria contrasta com as teorias anteriores que abordaram esta ou aquela questão precisamente pela sua capacidade de colocar novas perguntas. Contrapor à realidade uma nova pergunta, que até então ainda não havia sido imaginada, é já enxergar a realidade de uma nova maneira[6].

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